Um Dia Nada Perfeito

23 de dezembro, Lua cheia pendendo no céu, meus saltos ecoando pelas ruas de ladrilhos. Vestido justo e sorriso no rosto, eu estava completamente feliz pelo nosso dia, batom vermelho, camadas de rímel, seu perfume preferido. Sutiã carmin marcando de levinho, como naquela noite fria no hotel, só para fazer você lembrar.
Uma flor na mão. Esperei. Os ponteiros da catedral iam batendo, avançando, mordi o lábio e respirei fundo. O vento frio me arrepiava a nuca e eu comecei a ponderar que talvez você não viesse.O tempo foi passando. Tic-Tac. Tic-Tac. Cada batida uma lembrança, um sentimento.

Lembrei-me daquele dia, nosso primeiro encontro, tudo deu errado. Eu usava vestido de verão, choveu. Carregava minha bolsa mais cara, fomos assaltados e na volta, na porta da minha casa, quando você estava a ponto de me beijar, uma borboleta pousou em seu nariz. Sorte. Tudo bem, pois estávamos juntos.

Lembrei de quando fomos ao zoológico e aquele tigre resolveu te atacar. Amor, eu tinha te avisado que ele não gostava de amendoins.

Lembrei-me de nossa primeira viagem, você não aceitou ligar o GPS, nem usar o mapa. Nos perdemos em Veneza e não dormimos no hotel cinco estrelas que você tinha alugado. Mas tudo bem, pois estávamos juntos e, com as mãos enlaçadas nas suas, uma madrugada descobrindo a cidade não pareceu tão assustadora.

Lembrei de quando fui à sua casa, conhecer seus pais. Sua mãe pediu para eu ajudá-la na cozinha. Destruí a casa e queimei o cozido, mas você comeu mesmo assim e fez piadas bobas quando o silêncio pairou na mesa depois da minha discussão com seu pai sobre a nova reforma trabalhista.

Lembrei do primeiro dia mais feliz. Meu pedido de casamento. Estávamos andando na avenida quando soltaram milhões de borboletas sobre nós e uma carregava uma caixinha vermelha. Eu me ajoelhei e disse as palavras. A primeira vez que dizia o quanto amava essas sardas que decoram suas bochechas, seus olhos encheram d'agua e você me levantou pela cintura balançando a cabeça que sim, que sempre.

Lembrei do dia D. Era um grande salão no campo. Meu vestido rasgou. Seu terno manchou. O bolo estragou. Seu tio Arnaldo se confundiu e o hino do Vasco tocava enquanto eu andava pelo tapete vermelho. Mas você segurou minha mão mais forte do que nunca, respondeu "Aceito" e me beijou. O mundo se desmontava quando esses olhos castanhos prometiam ser meus por uma vida inteira. Então tudo estava bem, pois estávamos, de todas as formas, juntos.

Lembrei-me da nossa lua de mel, queríamos ver a neve cair. Floquinhos maravilhosos. Mas isso não aconteceu, pois um fenômeno fez os EUA nadar em calor nos nossos 12 dias por lá. Então, você me levou ao teatro municipal e pediu para que eu fosse ao palco, me fez fechar os olhos e fazer um desejo. "Você", pensei e um milhão de flocos brancos caíam sobre nós enquanto você dizia "Realizado."
   

Lembrei dos dias que se seguiram. Foram tão bons, tão desastrosos quanto. Nossa casa não ficou pronta a tempo, tivemos que ir para um hotel qualquer. Quarto 407, toalhas brancas e nossas risadas ecoando no saguão depois das 23:00. Sua mania de tomar o yogurte direto da garrafa, seu perfume inundando minhas camisas todas. Minha boca fazendo morada no teu pescoço e meus livros espalhados pela bancada da cozinha enquanto você prometia colocar a roupa pra lavar no dia seguinte. O jeito que suas sobrancelhas pareciam querer saltar do rosto quando algo te incomodava e meus gritos por qualquer besteira, portas batendo e o silêncio da manhã enquanto a gente se encarava pelo espelho.  Minha mania de esquecer o secador na tomada, suas planilhas expostas no sofá enquanto seus braços rodeavam minha cintura, me seguravam pelas coxas e sua boca buscava abrigo na minha. 

E, enquanto observava você dormir numa terça qualquer, me dei conta de uma coisa: meu coração, que já batia totalmente desgovernado, não estava mais sozinho. Um outro batia no mesmo ritmo. O seu. Eu tinha alguém para compartilhar minha sorte desastrosa. Alguém para fazer certo tudo que desse errado. Eu estava feliz. E torcia por você também estar. Acreditava que estava, pois estávamos juntos. Mas agora, não tenho mais certeza assim, não sei mais. Talvez você não venha. 23h59min Tic-Tac 00h00min. É, você não vem mesmo.

Uns segundos parada, sem pensar, sem aguentar lembrar. Por fim, respirei fundo. Joguei o cabelo por cima do ombro -gesto esse que fazia seus olhos brilharem, é-. A flor ainda estava segura em minha mão, sabia? Eu ainda acreditava. Algumas lágrimas caíram, e o mundo parecia girar do contrário só por brincadeira. Mas tudo bem, meus saltos ainda faziam barulho nos ladrilhos e, aqui dentro, ainda havia algo real, algo leal, um pouco de amor.



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